quarta-feira, 18 de março de 2009

Cotidiano I

Dormir pouco, acordar pontualmente quatro horas depois de deitar, tomar banho, escovar os dentes, colocar roupas limpas e ir trabalhar.

Sair para a rua com o sol refletido em meus olhos castanhos, acender o primeiro cigarro do dia, a primeira tragada de fumaça, o trafegar de carros produzindo sons vigorosos que queimam meus tímpanos, pessoas que caminham sem olhar para os lados, sem perceber o glorioso raiar do cotidiano.

Cruzar com o guarda da rua, eterno em sua camisa azul escura, calças cinzas e sapatos pretos, a cuidar de sua guarita de plástico e das grandes casas envelhecidas que, sonolentas, despertam com o latido dos cachorros alvoraçados.

Um poodle, de um branco desgastado pela idade, leva para passear sua dona, todos os dias, todas as manhãs se aproxima de mim e fareja minhas pernas como se liberasse meu transitar por sua rua.

O ônibus com suas carga de trabalhadores, estudantes, vendilhões, aposentados, sonolentos, entediados, preocupados, traidos, amados, que dormem, que falam ao celular, que cantarolam desafinadamente, que conversam em voz alta, que ouvem o rudimentar diálogo entre o cobrador e o motorista.

Desço do coletivo (odeio essa palavra!), compro o jornal de esportes, cuja leitura dura o tempo entre a estação onde embarco até o trabalho.

O trajeto do trem é sempre um momento de nostalgia, de quando criança e era comum viajar entre os estados em trens noturnos, cujas viagens eram mais curiosas, mais sensoriais do que os voos rápidos e conturbados e pseudo-práticos de hoje.

O trabalho é uma mistura de tédio com o caos, uma batalha entre o cotidiano e a incerteza, uma corrida alucinada dentro de uma roda a girar dentro de uma gaiola gradeada. Elevar o sentido do cotidiano é o que considero meu trabalho, fazer com que os que estão à minha volta não se deixem cair pelo brutal e cotidiano massacre. Fazer com que percebam que há sutileza nesse cotidiano, que há aprendizado e alegria mesmo nos momentos mais complicados.

Os melhores dias são aqueles em que sinto-me especialmente esgotado, em que a demanda das pessoas me torna útil e sou capaz de manter o curso mesmo quando tudo parece fora de controle.

Os piores dias são aqueles onde não há desafios, decisões difíceis ou resta apenas o burocrático. Nesses dias o que me esgota é o tédio.

Redemoinho

Quais escolhas você fez em sua vida? Que momentos são os mais importantes? Qual o papel que sua consciência teve em suas decisões? Houve alguma decisão realmente? Ou apenas um acumular de situações que tomaram sentido depois de ocorridas?

Percebemos o quão pouco podemos decidir realmente? Percebemos que muito de nossa personalidade, objetivos e conquistas nada tem de planejado? Que, ao contrário, existe uma infinidade de detalhes, de acontecimentos, de situações que escapam totalmente ao nosso controle e que terminam por determinar o que somos, o que defendemos, o que acreditamos ser o mais original em nossas vidas.

São perguntas que sempre voltam, que sempre burilam minha consciência nessas madrugadas mudas.

Transito entre o mundano e o sagrado, um oscilar cônscio e vigiliante. Deleitar-me em pecado, ajoelhar-me perante o perdão divino. Creio, mas deixo que meus demônios carreguem-me por suas sendas maculadas.

Eis o mais triste pecador, aquele que comete atos impuros pelo simples prazer de ser capaz de fazer, de agir.

Depois é sorrir sarcásticamente para os outros, como a dizer : "Não tenho receios ou pudores, sou o que sou." E por dentro saber-se o mais covarde dos Homens.

Nesse redemoinho chamado vida, quais são os momentos eternos? Quais as palavras que permanecem? Qual o toque carinhoso que sempre será lembrado? Quais desejos são permanentes?

Se me fala de Liberdade, respondo com "Que Liberdade?"
Se me fala de Caminho, pergunto "Qual Caminho?"
Se acredita que realmente fará diferença, ouso dizer "Quem disse que o mundo quer que você faça alguma diferença?"
Se a Felicidade é tudo que importa, pergunte-se "É o Homem, um ser capaz de suster sua própria felicidade?"

Não acuse-me de casuísmo, não é este o ponto. Apenas diviso a pequenez de nossa existência. A pequenez de nossas decisões e escolhas. Dia após dia, deixo cada vez mais os acontecimentos nas mãos da Providência. Educar a alma, os sentimentos, o corpo, para aceitar o que é e ser fortaleza nesse tufão irrefrável chamado vida.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Murmúrios

O apartamento está na mais completa escuridão. Lá fora a chuva cai, forte, gelada. Ouça o rumorejar distante dos trovões. A cidade está silenciosa. Não há som algum dos outros apartamentos, há apenas o vento cantarolando na folhagem das árvores.

Tive um novo encontro com a morte estes dias. É triste perceber que o maior sinal de que estamos a envelhecer é o perder gradual de nossa família, mesmo que distante, mesmo que esquecida na cotidiana luta. Penso nas tias, tios, primos e primas que estavam no velório de minha vó, seus rostos envelhecidos, suas vozes fracas e melancólicas. Sei que agora, o tempo para eles, como para mim, é inevitável. E já o fim se assombra em suas vidas.

A chuva e o vento aumentam, a janela está aberta e sinto o ar gelado em meu corpo. Deixo a chuva molhar o chão da sala, não me incomodo. O único problema hoje é a gripe que toma meu corpo, que arranha minha garganta, maculando o gosto do tabaco que insisto em fumar para manter-me acordado, mesmo cansado, mesmo com os olhos ardendo.

Tomo um gole de vinho que desce amargo, amadeirado.

Faz tempo que não vou a uma igreja, faz tempo que sequer rezo um pai-nosso. Se estivesse procurando por salvação, estaria em uma igreja agora. Irônico.

Há uma vida lá fora da qual me obrigo a participar, mas por dentro, sinto-me oco. A hollow man, como bem definiria T.S.

Estou cansado e o sono não consegue dominar meu corpo. Estou cansado e a madrugada segue chuvosa, os trovões continuam a murmurar ao longe.

domingo, 1 de março de 2009

Pequenas histórias

Meu pai chorou quando seu pai, meu avô, morreu. Nunca vira meu pai chorar antes.

Lembro de meu avô morando em uma edícula, quarto, sala e banheiro, na sala, uma estante cheia de livros, inclusive uma gramática de um bisavô, pai da minha avó por parte de mãe. Meu avô falava dessa obra com orgulho, com orgulho de um de seus netos ser descendente do homem que fizera aquela gramática.

Mesmo com sua idade avançada, meu avô mantinha algo de aristocrático, algo que não era de sua origem, mas que tinha origem naquela irmandade, naquela família unida por laços literários e gramaticais.

Gostaria de ter conhecido meus avós melhor. O pai de minha mãe também partilhou da paixão pela linguagem. Até hoje é vendido um dicionário de português-italiano de sua autoria. Ele também trabalhou em uma fábrica de chapéus em Campinas. Acho que a fábrica ainda existe e se chama, ou chamava, Cury Chapéus. Uma vez fui lá e comprei um chapéu cinza, desses modelos que eram moda na década de cinquenta. O ambiente da fábrica era rústico, dava para sentir que o tempo de alguma forma não havia passado por ali, e poderia ver a qualquer momento meu avô, com seu imenso sorriso e olhos verdos a acenar-me de uma das máquinas de cortar.

Minha avó por parte de mãe escrevia sonetos, que sempre li com tristeza, na maioria ela relembrava momentos com seu marido, meu avô, outros eram quase preces, onde pedia para encontrá-lo no Paraíso. Alguns pediam ainda pela saúde e paz para a vida de minha mãe.

A mãe de meu pai tinha ascendência indígena muito próxima. Diziam que sua avó havia sido laçada por um português que a fez sua mulher. Era uma senhora de cabelos pretos, escorridos, que gostava de assistir Silvio Santos aos domingos.

Escrevo sobre eles, sobre meus avós, para reter algo de uma família que gostaria de ter tido mais presente, da qual eu me sentisse realmente um membro e não um pária a chorar sozinho no enterro de meu pai.

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Uma história que quase se perde. Minha mãe costumava contá-la. Quando eu era um bebê, com apenas alguns dias de vida, minha mãe e meu pai visitavam meus avós paternos. Eu estava em um dos quartos, supostamente dormindo. Meu pai cochilava na sala, quando percebeu um vulto, não, não era um vulto, era a presença de um irmão dele, que vergonhosamente não lembro agora, que havia morrido. Esta presença olhou para meu pai e entrou no quarto em que eu dormia.

Meu pai levantou assustado, ele sempre teve essa capacidade brasileira de ser caprichosamente carnal e ao mesmo tempo com um profundo respeito pelas idiossincrasias espirituais, chamou por minha mãe com uma ponta de temor em sua voz e entrou no quarto.

Esse meu tio estava ao lado do berço em que eu dormia, minha mãe diz que tanto ela como meu pai viram o espírito de meu tio. Eles se aproximaram do berço e eu estava com o rosto arroxeado, o cordão de uma chupeta apertava meu pescoço impedindo que eu respirasse.

Minha mãe sempre me contava essa história. Nunca duvidei dela. Pena não lembrar do nome desse meu tio. Mas quem sabe não o encontro do lado de lá?

Falta

O vinho deixa um gosto de madeira em minha boca. Seco.

O que estou esperando aqui? Tempo perdido não dá para recuperar. Não há necessidade de falar nada, apenas esperar o calor passar e eu não quero mais voltar.

Deixo os fantasmas assombrarem meus dias. Andando ontem, debaixo do sol desta cidade infernal, vi minha mãe em meio à multidão. Assombrado por minha culpa, sinto meu peito arfar e o ar faltar de forma mais frequente agora.

Olho para o relógio e a madrugada está apenas começando, madrugadas silenciosas, onde até o som de minha voz faz falta.

Estou acostumando-me com o silêncio das madrugadas, sinto perder à cada dia a necessidade de conviver. Acordado até o amanhecer, cigarros mantendo-me acordado, o apartamento ecoa silêncio.

Outro gole de vinho, o que mantemos desta vida? Olha para as cicatrizes em meus pulsos, elas significam algo ainda?

Gostaria de encontrar Marie, compartilhar pequenos pedaços de mundos, relembrar o quão agradável é o compartilhar de risadas, mas hoje isso não passa de uma piada amarga. Retalho meus dias em pequenas obrigações que nada satisfazem, que apenas deixam-me seco. Marie se foi, como tudo. Eu a deixei ir, eu a mandei ir. Se a encontrar hoje, já não sei sequer se sou capaz de dar-lhe um oi.

Minto para mim mesmo dizendo que sou mais feliz estando sozinho. Minto? Ou será essa a mais pura verdade?

Há momentos, ultimamente são muitos, em que realmente isso é verdade, trabalho meu corpo, mente e alma para acostumar-me com o estar só. A cada dia, o esforço vai se naturalizando. Temerei o dia em que isso for concreto? Temerei o dia em que não mais sentirei sua falta?

Olhe e contemple, este é o caminho que traço, um andarilho de coração em uma estrada solitária.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Prece

Chove nesta madrugada. Uma chuva lenta, tranquila, que deixa o ar limpo e fresco. Silêncio nas ruas, ao longe, um pássaro plange seu canto solitário.

Em madrugadas como essa é fácil acreditar em Deus.

A chama do isqueiro ilumina suavemente o quarto, trago a fumaça do cigarro como quem murmura uma prece. A vida tão curta que temos e o quanto a desejamos por completo.

Pingos d'água tamborilam nos carros estacionados em frente a janela. Ritmados, calmos, uma canção de ninar cantarolada ao ritmo da chuva.

Sinto o cheiro da terra molhada, o cheiro que o abraço de Deus deve ter.

Um dia a terra irá receber meus restos, um dia serei pó, como todos estamos destinados a ser. Do pó ao pó.

Espero que chova neste dia, que seja esta mesma chuva suave.

Que me faz lembrar da boa vida que temos, pois toda vida é boa, simplesmente por ser vida. Em meio ao caos presente e intransponível, temos estes pequenos lampejos da presença d'Ele. Estar aberto aos pequenos milagres que nos cercam é o que me dá coragem diante do adverso, é o que me faz suportar, resistir aos tormentos nossos de cada dia.

Em meio ao silêncio desta madrugada, tranquilizo minha alma, acalmo meu demônio, deixo o ar da madrugada entrar para apaziguar meus tormentos.

O viver, dizem, é aprender a sofrer sem desesperar-se. Para cada momento de dor profunda, há uma alegria a ser encontrada com cada novo dia, talvez esteja sendo um tanto ingênuo, mas acredito que nossa pequena porção de felicidade está nas pequenas coisas, não nas grandiosas. Um sorriso que agradece, um olhar que encanta, uma canção que faz da nostalgia nosso coração.

Quantos pequenos momentos como esse temos em nosso dia e quão pouco prestamos atenção neles?

Também dizem que viver é aprender a morrer. Sendo assim, espero aprender da melhor forma possível, para poder dizer ao Criador que, desta vida, tudo que vivi foi o mais belo presente que Ele poderia ter me oferecido.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Um fim

Cuspiu catarro e sangue naquele dia morno. O sol brilhava, uma leve brisa outonal entrava pela janela do banheiro.

Suas mãos apertavam a borda da pia, levantou o rosto, estava pálido. O peito ardia ferozmente, tentou aspirar o ar fresco da manhã mas não conseguiu. Sentou na privada e ficou olhando para suas mãos que tremiam. Levantou-se, tomou seu banho, vestiu-se e foi trabalhar.

Não procurou um médico, não precisava de diagnóstico ou de recomendações. O que havia em seus pulmões era o descaso de toda uma vida, uma vida sem razões maiores ou grandes paixões.

Não entrou em desespero, não deixou-se levar pela depressão, apenas seguia seus dias tossindo sangue e catarro.

Saber que caminhava para o fim não o incomodava, apenas não queria que sentissem pena dele, portanto, não avisou ninguém da sua família ou aos colegas do trabalho. Suas irmãs nada saberiam, seus pais nada perceberiam.

Um dia a tosse foi mais forte, mais dolorida, algo sólido subiu por sua garganta e grudou na parede da pia. Percebeu, como se percebe a picada de um mosquito, que era um pedaço de seu pulmão que cuspira. Foi então que decidiu pedir demissão do emprego.

Não escreveu nenhuma carta, não deixou nenhum recado. Sabia que iria morrer em breve e não queria estar próximo de ninguém que o pudesse confortar.

Vendeu tudo que havia em sua casa: carro, a T.V., seus livros, seus móveis. O que não conseguiu vender, deixou na rua para que fosse levado pelos catadores de lixo.

Viajou e foi morrer junto ao mar. Em suas mãos havia apenas um terço de madeira.

A Graça

Estou consumido pelos meus vícios. Sinto meu espírito partir-se, estilhaços que já não consigo juntar.

Estilhaços que cortam minha pele de dentro para fora. Falta ar em meus pulmões corrompidos pela fumaça dos cigarros que fumo sem contar.

Livrai-me do Mal que habita meu peito, uma prece sem efeito hoje, sem redenção para mim.

A dor em minhas costas encurvadas, o amargor de esperar por você, sabendo que não virá. Espero que a noite passe lentamente, o calor é insuportável, não há vento, nem as hélices do velho ventilador branco conseguem romper este ar modorrento.

Se tive sonhos em minha juventude, já não consigo lembrar-me deles. Foram-se. São menos que cinzas ao vento. Nas poucas horas que o sono me abriga, não há repouso, não há descanso, apenas o entorpecimento que abre meus olhos ao despertar é presente e intenso.

Abandono toda esperança, todo desejo. Minto, o desejar está presente, mas conspurcado, poluído por meus vícios e por minha intransigente solidão.

Mas a esperança por dias melhores se foi. Invento simulacros de uma vida ainda por viver, mas engano a quem com isso?

Não. Minha grande resposta para a vida sempre foi esse covarde negar. Este covarde e egoísta medo.

Ah! Escreverei sobre o pior que há em mim. Para purgar meu demônio, para exorcizá-lo da única forma que sei; encarando-me no espelho e desafiando o abismo.

Este abismo que tanto atrai, que com sua força a tentar-me todo dia, há de derrotar-me apenas quando minha voz silenciar, quando meu corpo abandonar sua razão, quando meus impulsos mostrarem-se fracos.

Acordar todo dia, as linhas em meu rosto aprofundam-se e assim percebo que mais um dia vivo é mais um dia em que a Graça está à minha espera.

Deus está sempre à nossa espera.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Sonhar

Foi apenas alguns dias após seu trigésimo quinto aniversário, acordou de um pesadelo.

"Quem são? Quem morreu?" - pensou, ainda com o coração a rebentar-lhe o peito. " Um acidente de carro?"

Buscou pelo copo d'água que passara a deixar ao lado da cama, hábito que tinha desde que começou seu namoro com Cristina. Fazia oito meses que estavam juntos e ela agora dormia pesadamente ao seu lado, protegida da corrente de ar gélido que passava pelo vão da janela por um cobertor xadrez, azul e preto.

Estava de costas para ele, os cabelos castanhos, longos. Ela tremeu por alguns segundos. Seu corpo ficou retesado.Ternamente ele a abraçou. Um abraço silencioso, sentiu-se como se há muito tempo não fizesse isso, sentiu a pele dela tocar a sua, um encontro que sabia ser, naquele momento, o seu ato mais amoroso. Seu toque despertou-a levemente da tensão e com um resmungo delicado virou o rosto, mergulhando em seu peito protetor.

Abraçados, voltaram a dormir. Protegidos do frio pelo calor de seus corpos, afastaram-se dos sonhos inconscientes e mesquinhos. Estavam juntos pela primeira vez.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Prece a um amigo

Foi num dia de Janeiro. Aventuramo-nos na serra que separa nossa cidade da cidade praieira e poluída que é visitada todo verão pelos estressados cidadãos em procura de motivos diferentes para manterem-se a reclamar da vida.

Fomos até lá de trem, na época os trens eram fantasmagóricos, sujos e quebrados, mas nós éramos quatro caras que já haviam atravessado a cidade de madrugada e não era um simples e temerário trem que afastaria-nos de nosso objetivo.

Este era dos mais simples, apenas passar um dia no mato, no meio da natureza. Na verdade, pensando bem no assunto, não tinhamos nada em mente, apenas a vontade de fazer algo diferente. Portanto, municiados com uma garrafa de pinga e de um pacote de broa de milho, seguimos para o mato.

Descemos em uma parada isolada, apenas um casebre velho que servia como bar e que vendia de tudo um pouco. A cachaça e broa compramos lá, mas se quisessemos podiamos ter comprado ovos, linguiça e até alguma galinha para matar depois. Mas o que tínhamos era suficiente. Obviamente o que tínhamos não era nada ideal para os padrões modernosde aventureiros, estávamos vestidos com nossas roupas comuns: calças e casacos jeans, camiseta e tênis. E nossa provisão inusitada.

Seguimos por um terreno plano, marcado por altas torres de tensão que com sua arquitetura iam ao infinito, levando energia e civilização para as pessoas. Nós, naquele dia, fugíamos disso.

Logo entramos em uma parte mais fechada da mata e depois de andar por mais ou menos uma hora encontramos um rio. Zeno, um skinhead que já tinha uma vez ameaçado me espancar em uma noite de bebedeira, conhecia a região. Afinal, passara um mês por ali, escondido da polícia por razões que desconheço até hoje. Portanto, sendo conhecedor profundo daquele lugar, orientou nossa expedição mambembe.

"Seguindo o rio, iremos encontrar as cachoeiras." Disse após dar um gole na cachaça e me passar a garrafa.

O dia estava quente e seguíamos pelo rio, ora andando dentro da água refrescante, ora caminhando à margem. Aqui e ali, sinais de acampamentos abandonados, isto é, garrafas e latas deixadas para trás, maços de cigarro vazios e até uma bóia de pneu de trator furada estava por ali.

Foi quando chegamos ao vale. Uma série de cachoeiras formavam um lago a uns quinhentos metros abaixo, o rio que seguiamos era uma dessas cachoeiras, mas pequena. Na nossa diagonal, à direita havia outra, imensa e bela, ladeada por um morro, mesmo do ponto em que estávamos, o barulho das águas caindo era cristalino, forte.

Descemos até o lago e ficamos por ali, a bebericar nossa aguardente e olhar para o céu azul e a água clara que corria.

Foi então que Tabba, um outro colega, encarou o morro com seu olhar desafiador, olhou para nós com os olhos flamejantes e disparou o desafio.

"Vamos subir essa porra!"

Em um primeiro instante nos entreolhamos, mas a juventude e o álcool fizeram sua parte. Todos queriam desafiar o morro imponente.

Começamos a subida. Na frente Zeno, logo abaixo dele, Tabba, eu era o terceiro e Chupisco estava logo atrás de mim. Nos primeiros momentos da subida percebi, graças aos pedregulhos e a areia que caia em minha cabeça, que a terra do morro era muito arenosa e que todo ponto de apoio utilizado pelos dois acima de mim, era logo desintegrado por suas mãos ou pés. Chupisco, que era o último, percebeu que para ele a dificuldade seria maior, e gritou abaixo de mim.

"Cês tão doido, eu vou ficar aqui embaixo, vou subir isso aí, não!"

Eu nem olhei para trás, estava preocupado com a quantidade de terra que caia e percebia que a cada metro que subíamos o caminho ficava mais difícil. Não havia como utilizar os mesmos apoios, pois uma vez usados, eles já não existiam. Portanto, continuar seguindo os dois só iria me deixar em apuros.

A cada metro subido, os apoios diminuiam, cheguei em um ponto em que não tinha mais como apoiar a subida.

Foi quando decidi mudar o meu trajeto. Subíamos pela esquerda do morro, que era a parte mais arenosa, a minha direita, o terreno tinha mais mato e algumas raízes que comecei a usar para manter-me preso ao morro, já havíamos subido um bom pedaço e agora não tinha volta, era subir ou subir, descer era simplesmente impossível.

Fui pelo meu novo trajeto e já não mais via os dois que iniciaram a subida. Agora, não havia ninguém. Apenas eu, as raízes e a terra do morro entrando em meus olhos e boca.

Ali, sozinho, percebi que minha vida podia terminar, esborrachada nas pedras vermelhas abaixo.

Ali, sozinho, percebi que a única coisa que me manteria vivo era a capacidade de entender o que meu corpo agarrava, pois agora não apenas minhas mãos e pés mantinham-me preso ao morro, mas sentia meu peito, minhas coxas, minha barriga, todo meu corpo estava preso aquele morro, como um amante à sua amada, como um filho agarrado à mãe. Aquele morro era o que exisitia para mim naquele momento. Sem ele, eu era apenas um corpo caindo para o vazio.

Subi mais alguns metros e atingi a parte do morro em que já podia ficar realtivamente de pé, o terreno já não era de pedra e areia, era um matagal de três metros de altura. Havia o que agarrar agora, sem medo de cair, mas a densidade do mato era tamanha que a única forma de atravessar era me jogando em cima do mato para conseguir seguir em frente. Isso durou horas. O mato era cortante, e minhas mãos estavam com pequenos ferimentos causados pelo fio das folhas. Eu suava e sufocava. Sentia que o álcool já abandonara meu corpo e a força que fazia e a adrenalina me faziam gargalhar.

De repente, estava no topo. Fora o primeiro a chegar. Sozinho o sol me recebeu. Sozinho o ar puro encheu meus pulmões. Abri os braços e gritei. Gritei como nunca gritara antes e nunca mais gritei daquela forma.

Êxtase!

Gritei por estar vivo. Por sentir-me vivo! Por ter sido poupado por aqueles deuses primevos que habitam a natureza selvagem.

Logo depois meus dois companheiros de subida chegaram, nos abraçamos e comemoramos nosso dia, nossa conquista, nosso destemor infantil.

Descemos o morro pela cachoeira grande e a chuva chegou junto. Terminamos o dia voltando para casa, cheios de lama, molhados, bêbados e felizes.

Muito tempo passou depois deste dia. Zeno foi preso e nunca mais o vi. Tabba se matou. Um dia pulou de uma ponte aqui perto de casa e seu corpo foi encontrado dois dias depois. Chupisco desapareceu na vida.

Eu sobrevivi.

E devo isso ao Tabba, que na subida de volta, pela cachoeira pequena, eu, meio bêbado, dei um passo em falso, meu pé esquerdo flutou no abismo e só senti a mão dele puxando-me pelo casaco jeans, arrastando-me da queda. Esse cara salvou minha vida.

Portanto, devo essa história a ele. Que sua alma encontre a paz que não teve na vida.

Argamassa e Tijolos

Há um muro a nos separar.

Será que não percebe que construímos esse muro? Mas por qual razão nos mantemos tão afastados, tão distantes?

Será que, como esses muros altos que protegem grandes mansões, não estamos apenas nos isolando da vida? Mas, diferente destes, que tem algo a temer, afinal a violência grassa em nossa cidade como deve saber. Mas e nós, o que tememos?

Tememos a nós mesmos? Tememos o desencontrar de nosso tempo e vida? O que protegemos deixando este muro a nos separar? Vidas incompletas, talvez.

Acordo todos os dias e treino um sorriso cínico no espelho pensando: "Não há de me incomodar este muro, não há de me fazer querer derruba-lo." Me convenço e saio para mais um dia de trabalho e simulações.

O tempo é a argamassa que vai fortalecendo este muro. Deixo que ele trabalhe e tento não mais pensar no que ele significa ou no que ele separa. Deixo que minha rotina seja preenchida de vazio e desesperança, apenas para encontrar um rosto envelhecido ao amanhecer.

Estou velho demais para isso.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Sem querer

Ele estava com medo dela. Não era um temor natural, como tememos um cachorro bravo ou baratas voadoras, mas um medo ali dentro que o fazia sentir o coração bombear forte e sua face corar como um adolescente.

Soube que sentia isso ao cruzar o olhar e as palavras com ela, não da primeira vez, como em comédias românticas e irreais, mas após penetrar, quase sem querer, em um universo de dúvidas e lembranças, paixões e músicas, que derrubaram seu muro emocional.

Não era algo que esperava, nunca é, e apesar da experiência em outros relacionamentos, todo alquebrados, sentia esse temor de forma consistente, plena.

Disfarçava, em cada novo encontro fortuíto, seu medo com um misto de arrogância e cinísmo, uma forma desesperada de reerguer, de novamente encontrar sua proteção solitária. Às vezes não conseguia e sentia-se vulnerável, o que o deixava irritado consigo mesmo por não ser capaz de manter-se no controle, de deixar-se levar por aquele sorriso sincero e tímido que o comovia sem querer.

Passou os últimos dias a medir, a refletir, a equilibrar-se em motivos que o obrigava a racionalizar e afastar-se de alguma forma daquele medo. Dela.

Procurou silenciar sua vida de forma a não deixar mais que dali, nada se revelasse que pudesse comprometer o que mais importante encontrara nela. Sua amizade.

Pois sabia que, no final de tantos e desastrosos finais que dividiu em sua vida, o bem mais precioso perdido era aquele intangível e irrecuperável encontro que tão pouco acontece em nossas vidas.

E por conta disso, seguiu sua vida, sem mais permitir que seu empedernido coração voltasse a bater de forma descontrolada.

O Lutador

Qanto tempo até percebermos que já não há mais tempo? Quanto tempo a vida nos dá para tentarmos acertar o que passamos uma vida errando?

As marcas em seu corpo mostram o tempo que o consumiu e as lágrimas em seu rosto deformado pela dor revelam que algo em sua alma ainda clama por redenção.

Não conhecer outra forma de provar que está vivo do que suportar a dor, que é tão viciante quanto os remédios que toma para suportar o que foi desperdiçado.

Ah, velhos hábitos, quando nossas paixões viram nossa decadência? a partir de que ponto nossas escolhas viram nosso destino e não permitem mais outra saída senão o aceitar sereno e combalido de nossa fragilidade, mesmo que disfarçada de ousadia e tenacidade?

Existe um ponto onde não é mais possível voltar. Onde não é mais possível corrigir os erros. Sim, mas a única coisa que esperamos é que, estejamos de pé ou ajoelhados no final, seja por sabermos que chegamos até ali por nossa decisão, e que não há ninguém a culpar além de nós mesmos.

E que isso seja suficiente.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Fragilidade

A última conversa com seu pai foi pelo telefone.

O tempo passara por dez anos e desde então não via seu pai. Apenas contatos esparsos.

Agora conversavam pela última vez, mas não sabiam disso.

O rancor da adolescência, que perdurou por boa parte de sua entrada na vida adulta, havia dissipado-se no coração do filho. Apenas queria dizer ao pai que aquela era sua vida, que aquelas eram suas escolhas e que era agradecido por tudo que, por mais dolorido que tenha sido, aprendera e vivera nos poucos anos juntos.

Como se soubesse que aquela era a última vez, seu pai demonstrou pela primeira vez compreensão, carinho e respeito pelas decisões do filho. Mesmo sabendo em seu peito que aquelas escolhas ainda cobrariam um preço alto na vida do seu garoto.

Despediram-se com cuidado, prometendo uma viagem, um encontro, uma cerveja e um cigarro juntos. Quem sabe, até ouvir alguns velhos discos. Desejavam e falavam um para o outro do encontro que nunca aconteceria, à beira-mar, ouvindo o som das ondas quebrando.

Poucos dias depois dessa conversa, enquanto assumia seu novo posto no emprego, um telefonema acabou com o encontro no porvir. Uma voz, que a princípio julgou ser de seu pai, disse-lhe que este morrera. Achou que fosse uma piada em um primeiro momento (nunca acreditamos nisso, é de nossa natureza, acho) mas no segundo seguinte a garganta fechou e as lágrimas brotaram de seus olhos, soluçou sua dor e largou o telefone nas mãos de um colega. Sentiu as pernas e o peito fraquejarem e foi abraçado por um amigo. Nada mais a dizer ao seu pai. Apenas lágrimas.

No enterro, afastou-se da família que não via há muito tempo e sentou debaixo de um toldo, chorando copiosamente. Lembrou então das palavras de sua mãe que dizia que seu pai, quando nasceu o filho, chorou como uma criança.

Agora era ele quem chorava. Não pela vida, como seu pai, mas pelo tempo que perdeu sendo menos que um filho.

Há dores que o tempo não cura, há cicatrizes que coçam toda vez que a solidão abraça nosso frágil corpo.

Sacrifício

Quando a vida termina? Quando ela começa?

Quem decide a qualidade da vida que levamos ou determina qual o padrão correto que é aceito como uma vida saudável?

Na Itália, alguém se foi por uma decisão médica. Que egoísmo é esse dentro de nós que não tem caridade pelos que não tem voz?

Esqueçam a política, os direitos impressos nas constituições e pensem.

Pensem naquele mendigo, que com seu cheiro agredia todos os passageiros do ônibus, ainda assim, um homem por trás da sujeira, da aparência, da repugnância. Quem de nós tem a coragem de ser tão cruel, de negar a uma pessoa seu direito de ser?.

Mesmo alquebrado, mesmo bêbado e maltrapilho, não há um homem ali? Não há respeito em nós pela sua simples existência?

Temo quando para essas respostas, sei que vários irão dizer, proclamar, desenvolver idéias que negam o simples, o ordinário, que tentam determinar (determinam) o valor da vida através de seus cáculos, de suas boas intenções, de seu cuidado para com uma vida saudável.

Quando nos deixamos levar por essas idéias, por esses conceitos, começamos a perder o sentido da própria vida.

Não, não haverá nunca um Paraíso terrestre e, ao tentarmos determiná-lo, moldá-lo, nada mais somos além de pequenos e egoístas semi-deuses exigindo um sacrifício que não é nosso, mas de nossos irmãos mais carentes, mais indefesos.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sorrir

Segurei pela primeira vez aquele bebê em um domingo de sol. Sempre tive medo do olhar dos bebês e, naquela vez, não era diferente. É como se o olhar deles penetrasse minha alma e soubesse de meus pecados de homem. Como se deles eu não conseguisse manter minhas máscaras e meus maiores pecados e falhas fossem cristalinos para eles.

O bebê cheirava como bebês devem cheirar. Um misto de perfume natural com leite azedo. As pequeninas e macias mãos brincavam com minha barba, seu rostinho rosado era delicado, sua boca emitia pequenos sons ininteligíveis e carinhosos. Meu olhar cruzou com o da criança que fomos todos um dia. Pela primeira vez em minha vida o medo dissipou-se. Naquele olhar não havia meu temido julgamento, ao contrário, parecia bendizer e perdoar todas as chagas de minha alma.

Aquilo durou apenas um momento, até que ela, com sua natural necessidade, gorfasse no Clint Eastwood estampado em minha camiseta, fazendo com que eu sorrisse para a vida como nunca sorrira até então.

Fantasma de uma vida

Ela saiu deixando o perfume nostálgico de seu sorriso na sala.

"Não sei, não quero ser dessas pessoas que quando terminam um relacionamente jogam tudo fora, todas as lembranças, apagam todas as músicas e queimam as fotos. Você foi um momento bom na minha vida, preciso disso para continuar acreditando"

Disse isso e se foi.

Depois de fechar a porta e perceber que o apartamento estava vazio de tudo, pensei no que havia jogado fora, melhor, pensei na razão de ter jogado uma vida com ela fora.

Por não querer encarar os problemas de nossa vida futura? Por já achar que esta vida estava comprometida pelos desencantos do último ano? Pelo simples fato de não saber como manter uma vida compartilhada?

Tudo que irá restar dessa história serão as boas lembranças. Será que por elas terminei uma família que poderia ser a minha?

E agora? e na próxima vez (estou tão ansioso assim por uma próxima vez?) será que valerá a pena trocar a incompletude que acompanha a amizade por momentos de entrega total que secarão completamente os encantos que florescem no alvorecer da paixão?

Permaneço como um fantasma nesta casa a esperar por lembranças que mantenho longe de mim. E como um fantasma, etéreo, incorpóreo, sem ação sobre o mundo real, entrego-me ao mais profundo descuido.

O aguilhão

Mentiu naquele dia pela primeira vez em um relacionamento de doze anos. Na verdade, já vinha dissimulando seus atos há pelo menos um mês.

Começou tudo em um jantar da empresa, sempre foi controlado e adorava manter a pureza de seu casamento em meio aos colegas que ou eram solteirões descompromissados ou casados que habituaram-se a trair suas parceiras sem culpa. No jantar em questão, bebeu mais do que o normal e já que a loira do outro lado da mesa insistia em lançar olhares para ele, resolveu sentar-se ao lado dela.

Suas pernas o impressionaram, seja pela falta de hábito de olhar para pernas alheias as da sua mulher, seja pelo curto vestido que as deixava impressionantes aos olhos masculinos. Nem soube direito o que disse, apenas prestava atenção aos lábios que exalavam um cheiro de vinho tinto que contribui mais ainda para o seu estado de embriaguez.

Passou o último mês embriagado e mergulhado em pequenos esquemas que o levavam a perder os jantares e a tediosa conversa matrimonial.

A mentira que tomou corpo naquele dia foi, como toda mentira em um casamento, um ato falho, uma desculpa que não deu certo, um atraso não explicado. Balbuciou que havia ido a um jogo de pôquer na casa de amigos, mas a verdade estava estampada em seu olhar culpado.

O mundo que construiu desmoronou quando sua esposa, com um olhar de tristeza que ele nunca havia visto antes, nem na morte da avó dela, simplesmente mostrou as últimas ligações do celular dele. Havia, tolamente, esquecido o celular em casa e como é óbvio, todas as mensagens eram das pernas embriagantes.

Sua esposa não fez nenhuma cena de suicídio, nem ameaçou arremessar seus discos pela janela. Apenas ficou encarando-o longamente, esperando que seu ódio alimentasse, penetrasse o coração do marido até a culpa queimar nele. Ela queima até hoje.

Não sabemos até agora o fim deste relacionamente, afinal, nenhum relacionamento realmente termina, ele fica assombrando, preenchendo, surgindo nos momentos mais estranhos durante toda a vida. Seja através de velhos amigos que sempre perguntam o que aconteceu, seja com o encontro deprimente com algum parente. Se há algo que sabemos é que a culpa mantém seu aguilhão no peito dele desde então.

Um cinzeiro

"Um cinzeiro cheio é um estudo de pessimismo" - pensou enquanto erguia-se para esvaziar o objeto de sua contemplação.

Passara o dia a fumar, sem saborear o gosto do tabaco, apenas para sentir que fazia alguma coisa para preencher as horas. Às vezes, ia até a janela observar o movimento das pessoas que entretinham-se com seus cachorros. O sol estava fabulosamente quente, o que era uma desculpa para não sair de casa. "Não, está quente demais para ir a algum lugar"

O dia acabou. O telefone, fora do gancho desde a noite anterior, não era necessário, afinal, mantinha à sua volta um fosso de indiferença para com as pessoas que era veementemente respeitado. Por ele mesmo, principalmente.

Esvaziou o cinzeiro com indiferença e voltou para o escritório já acendendo outro cigarro. Sentou na poltrona velha e marrom, arranhada por um gato que há muito tempo não fazia mais parte de sua vida. Em cima da escrivaninha depositou o objeto de vidro que servia para depositar seu pessimismo, vários livros empilhados faziam da operação um exercício de logística e equilibrio. Livros novos, marcados, meio lidos ou sequer abertos que eram motivo de um tênue e raso orgulho.

Ouviu ao longe o choro de uma criança, aquilo o incomodou. Olhou para fora da janela e tentou identificar de onde vinha, mas não saberia dizer de qual das casas na rua saia o som que o fazia lembrar de seus sonhos abandonados.

As horas, inexoráveis, seguiam seu curso. A madrugada avançava. "Dormir agora, amanhã mais um dia", balbuciou essas palavras enquanto abria o vidro onde guardava suas pílulas para dormir, pegou um copo com água e engoliu duas. Sentou-se na beira da cama esperando que a quimíca fizesse efeito em seu corpo. Esperou. Acendeu seu último cigarro, o que fez com que sentisse um frio na espinha. "Droga, devia ter comprado um maço antes de vir para casa" . Foi então que percebeu que o pessimismo alojara-se em seu peito e não conseguiu dormir.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O que vi em olhos castanhos que tanto me alegraram.

O que vi em olhos castanhos que tanto me alegraram foi o enigma revelado. Foi a pequena e luminosa chama que arde quando toda a luz se foi.

Como é pequena, delicada, a chama desse olhar.

O som deste sorriso de cores ergueu-me dos mortos, um fio de Ariadne a guiar meus passos para fora do labirinto que construi para esconder-me da vida.

E hoje, já não mais escondido, já não mais protegido, dou cada passo esperando encontrar o que vi nesses olhos castanhos um dia.

Um peregrino nessa terra desolada.

Lapso

Chove novamente. Novamente é madrugada. Sozinho novamente como há quize anos atrás. Novamente um cigarro queima e preenche minha existência.

Não há vicío pior para o homem do que a permanente fuga da realidade. Se soubesse o que sei hoje há vinte anos atrás, teria mudado algo? Rio diante da resposta que sei ser mentirosa.

Permanecemos ao longo da vida? Ou apenas vamos percebendo nossas falhas, nossos vazios e procuramos justificá-los, criando uma imagem que vamos modelando e, assim, seguir a ludibriar a nós mesmos ?

A única coisa concreta que construi na vida, minha única conquista, é um pulmão cheio de catarro dos cigarros que preenchem minha existência. Ou será a culpa que se alojou em meus pulmões?

O resto foi apenas um lapso do Eterno.

Escolhas

Quais são as escolhas que realmente fazemos na vida? Quem de nós pode dizer: "Eu sou o que sou pela minha vontade?"

Escolhi um caminho? Ou a vida que me deu opções que ignorei por arrogância, medo, excesso de juventude e irresponsabilidade?

Não, não falarei aqui de nada bom sobre minhas escolhas, até porque sei que não, elas não existem. O que existiu, (ainda existe?) foram acasos fortuitos, grandes decepções e traições. A experiência que os anos deveriam trazer, nada mais é do que uma cortina de fumaça, uma ilusão que que uso para justificar minha pequenez, minha covardia.

E estes sentimentos que nascem da autocomiseração são os mais patéticos que um homem pode carregar dentro de si.

Um dia achei ser capaz de comandar tempestades e o oceano, um dia as montanhas nada mais eram do que conquistas a serem realizadas, um dia amei uma mulher por quem valia a pena ser, um dia tive a coragem de ter amigos.

Perguntam-me: "Há escolhas certas ou erradas?" , "Há um sentido por trás disso tudo?" E para isso me calo. Visto meu paletó cinza e saio, pisando no asfalto quente com sapatos apertados. Por dentro há apenas silêncio, há apenas vazio.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Sob o domínio do mar

- Até lá, riamos!


Gritou da popa o velho marinheiro. Ele tinha a pele carcomida pelo sol e pelo sal de toda uma vida no mar. Nos últimos quinze dias a calmaria havia fustigado aquele barco. Agora a tempestade esmagava com o peso das águas a pequena fragata que carregava sua apática carga de homens.


A gargalhada desdentada ecoava acima do rugido das ondas. O velho despreza qualquer terror, qualquer medo. Mas com sua risada violenta, seus companheiros de infortúnio tremiam, recitavam suas orações, olhavam para o céu negro e alguns até misturavam lágrimas de medo com a água da chuva sem saber.


O timoneiro mantinha o leme no curso. Seu esforço era evidente pelas veias saltadas do braço, grandes e azuis, o sangue parecia querer rebentar delas.


- Nada a fazer, nada a fazer. Gemia o capitão, um homem até então arrogante e cruel com seus comandados, agora percebia-se que algo quebrara dentro dele, algo que, escondido por suas promoções, sua origem abastada e sua confiança infantil, havia permanecido escondido por toda sua vida. Era a sua mortalidade que agarrava com garras ossudas seu coração.


O barco parecia rodopiar no oceano Índico. Ali, em meio ao mais puro caos, não importavam mais as medições humanas, as técnicas aprendidas na academia, mesmo experiêcias anteriores não tinham mais significado. Aquele pequeno mundo que era o barco, enfrentava agora o seu dilúvio.

Quantas horas foram jogados de um lado para o outro naquele terror não saberiam dizer. O que de certo podemos saber é dos farrapos humanos que foram encontrados por um cargueiro chinês em um barco arrebentado e à deriva. Nos corpos esfaimados dos marinheiros, as marcas e cicatrizes da luta que enfrentaram. Estavam alquebrados e quase desfalecidos, apenas um dentre eles permanecia com o olhar forte.

Prescrutando a imensidão azul, o rosto crivado pela dor, pela fragilidade, o capitão da fragata apertava os punhos. Ao sobreviver ao horror dos últimos dias sabia que algo havia naufragado dentro de si. Já não tinha dentro de si a juventude de sua arrogância, esta havia morrido, agora restara apenas a têmpera de sua maturidade.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Pensamentos sobre Turner e Conrad


Turner e Conrad abarcam meu horizonte. O mar revolto, as embarcações esquivas sob o crepúsculo, nossas vidas tão pouco determinadas, tão pouco afeitas à nossa vontade.


Temos que contentar-nos com o imponderável, com o eventual que é próprio da existência. Quem há de negar que existem "sortes" e "azares" a definir o resultado de nossas ações, de nossa vontade?


Por mais que a procura por segurança, o controle das contingências e o medo do imponderável sejam o leitmotiv da era moderna, não há como fugir da realidade. Não há, por mais sólida que seja nossa embarcação, como controlar o oceano.


Atravessemos pois a nossa "linha de sombra" com a esperança que do outro lado, as rugas de sol em nosso rosto possam ser testemunhas de que ao menos tentamos.

Uma conversa nestes dias chuvosos

Estava em um ponto de ônibus , tentando acender meu cigarro debaixo da água caudalosa que tem sido de uma pontualidade exemplar nestes dias, principalmente quando comparada com o transporte coletivo da cidade. Entretido com o isqueiro, eis que me cutucam o ombro.

- Mas que coisa!? Ô seu grande filho-da-puta! Dá cá um abraço que faz tempos que não te vejo! Tirou a barba? Cansou de parecer comuna?! Continua na "lojinha"?

Quem me abraçava era o X. Já não o via a certo tempo. Dois, três anos, talvez. Um bom amigo, dos poucos que não tenho vergonha de encontrar hoje em dia.

- Pois é, cansei da barba, mas continuo no batente de domingo à domingo, sempre cansado pra missa.

- E aquela rapariga que já era quase tua esposa, fecharam o pacote?

- Então, na verdade já tem um tempo que a gente não está mais junto. Bom, pra ser sincero já pulei mais uma e agora estou aproveitando a solidão boa e particular dos solteirões de meia-idade. Ela, no final das contas, casou logo depois com o Zé, lembra dele?

- Nossa, que coisa, ora pois! é claro que lembro, não era aquele teu amigo de ir no estádio e tal? Mundo pequeno, hein? Agora o sr. então é um solteirão, fica por aí, só dando tuas beliscadinhas, tuas pequenas peregrinações pela permissiva feminilidade? vida boa, vida boa!

- Mais ou menos, na verdade tenho ficado mais fora da caçada. O tempo sozinho tem feito bem, sem maiores obrigaçõe, sem maiores compromissos. Estou adiando indefinidamente meu papel de pater familias, ou familis, como diria o sábio Mussum.

- Eita que essa foi boa! Mas sabe que a hora está chegando para o sr., não me vá dar uma de adolescente nessa altura da vida. Esse negócio de "adultoscente" é ridículo quando se tem cabelos brancos. Veja eu, casei, filho de um ano, uma alegria e completude na vida rapaz, você precisa disso uma hora e já tá passando a tua, hein?

- É, mas não sei, sinceramente não sei mais se quero transmitir, como diria o velho, "o legado de minha miséria".

- Eita nóis, citar o Machadão nessa altura da vida? Querendo parecer culto logo pra mim? Isso parece-me mais a desculpa perfeita para não assumir nada. Bom, vai vendo aí o que tu faz da vida que meu ônibus já tá chegando. Vê se não some e vai viver, pá!

Engraçado, ele não tinha esse cacoete linguístico de falar à portuguesa. Fiquei ali, levando chuva na cara, com meu isqueiro sem fluído a tentar acender um cigarro enquanto pensava o quão bocó era bancar o culto falando à portuguesa.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Do doloroso ato de escrever.

Escrever, lapidar, talhar as palavras e construir na pedra branca que são as folhas o sentido, o ritmo, o pulsar.

Sempre foi um ato mental, um construto da mente. A forma racional de representar sentimentos, alegrias, dores e perdas.

Essa era e é a meta, o objetivo, a maneira de se construir.

Mas descobri a dor do ato de escrever. De alguma forma, buscando transformar a memória em artefato, a razão cedeu. As palavras sucediam-se nas páginas. E de repente, não mais que de repente, o que era mente, racíocinio, esteticismo, foi varrido, foi violado. Um imenso desespero, uma imensa perda tomou posse do meu corpo.

Não sei, não sei se ao pintar, ao escrever, ao compor, ao lidar com seus ofícios, pintores, escritores ou músicos sentiram essa imensa vontade de chorar. Sentiram que a cada pincelada, cada palavra posta, cada nota articulada, fazia brotar lágrimas em seus olhos solitários.

Nunca escrever foi tão doído. Uma chaga aberta pelas palavras. E de alguma forma, cauterizada.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A dor que não termina

A casa era pequena e velha. As paredes estavam sujas, rabiscadas com frases, pedaços de reboco caídos. O chão da casa era de cimento, frio, cinza e rachado. Uma pequena sala, um quarto com a janela quebrada, plástico servia como vidro. Uma cômoda antiga, mofada, com roupas dadas por outros parentes e puídas, já com o cheiro que impregna a roupa dos velhos. A cama, de solteiro, pequena, triste.

No outro quarto papéis entulhados, revistas antigas sobre uma armação de cavaletes onde uma placa de propaganda política se passava por mesa. O ármario estava sem porta, as roupas jogadas, misturadas, sem saber se sujas ou limpas faziam sentido ali.

O banheiro, uma pia, uma privada, o chuveiro. Tudo reduzido, comprimido, úmido.

Uma antiga geladeira marrom e um fogão eram a cozinha. Ladrinhos vermelhos e gastos, a parte de cima desses móveis de cozinha estava preso a parede, era, como tudo, gasto e envelhecido.

As roupas eram lavadas em um tanque de pedra, na verdade, os únicos aparelhos elétricos da casa resumiam-se à velha geladeira marrom e a um rádio. Do rádio saiam músicas que faziam minha mãe chorar pelo que a vida cobrou dela. Pelo que agora, cobra de mim.

Minha mãe e meu irmão viviam nessa casa. O dinheiro e as condições de vida eram miseráveis. A casa ao lado era a casa em que morávamos há um tempo que parece tão longe. Tão triste. Esta casa, branca, com três quartos e mais uma edícula onde eu morava, foi o último lar que tive. A última vez em que "voltar para casa" fez algum sentido. Agora ela nada mais era do que ruínas, uma ruína do que fui. Como um antigo templo, ela fora saqueada, portas roubadas, coisas que pensamos ser sem valor sumiram na noite. Ratos infestavam essa casa, e viviam a rondar e aparecer na pequena e velha casa onde agora minha mãe e meu irmão viviam.

Desde que saí da cidade de minha mãe, nunca mais a visitei. Nunca procurei saber quais suas condições de vida ou penúrias ou medos ou angústias ou arrependimentos.

Andando nos arredores de meu apartamento, nesta cidade que adotei, passei por uma velha. Uma pessoa que reconheci poucos passos antes. A rugas eram profundas, o olhar, perdido, vazio, não tenho outra palavra para usar. Era tristeza o que via ali. Eu a reconheci e passei por ela. Esmagado, covarde. Passei dois passos, virei-me e com a voz trêmula falei: "Mãe?!"

Isso foi alguns anos antes da casa velha e pequena. A casa onde moravam minha mãe e meu irmão e que nunca fora visitar.

Minha mãe foi internada no hospital com hemorragia interna. Recebi o telefonema e tudo ficou nulo, de alguma forma, tudo ficou branco, vazio.

Ela estava em uma UTI, um tubo enfiado em sua boca havia deformava seu rosto enrugado. Deitada eu uma cama de metal as mãos inchadas e roxas por causa das agulhas de soro e remédios estava uma criança indefesa. Temi cada passo até o leito. Tremia ao ver minha mãe ali. Ela abriu os olhos e minha garganta fechou, meus olhos derramavam lágrimas quentes, ardidas. Eu convulsionava e só conseguia pedir perdão, perdão por ter sido um filho ausente e frio, por ter sido menos que um filho. E ali, naquele momento, aquela pessoa que tanto me fizera sofrer, que me espancava em seus momentos de fúria e alucinação, que tão pouco me confortou, ergueu sua mão inchada, olhou meu tormento com seus olhos de criança e com a voz por entre os lábios secos apenas disse "Não, meu filho, meu filhinho, não chore, mamãe está bem, não chore, não chore..."

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Madrugada II - 27-01-09

Somos obcecados pela idéia da felicidade. Somos arrastados por esta moderna obsessão.

O que é felicidade? O que é a sua felicidade? Será essa nossa condição, nosso último destino. Eternal bliss?

Onde encontrá-la? No gozo frenético dos amantes? No embuste de nossos egos sensíveis? Nas tênues escolhas que fazemos ao longo da vida?

O que é a felicidade?

Levados a crer que ela é um direito, uma obrigação, buscamos a resposta, buscamos sua definição. O que é a felicidade?

Será que esquecemos a pequena quantidade de felicidade a que somos destinados? Será que não percebemos mais as eventualidades, as contingências inerentes de nosso ser?

Deixamos de lado a imperfeição humana, varremos para debaixo do tapete nossas falhas e simulacros. Ratos em uma gaiola, correndo, fugindo, rodando. Tememos o erro, tememos o fim. Somos uma geração covarde.

O que é a felicidade? Um trauma.

Madrugada I - 27-01-09

Fragilidade.

Percebemos a morte em nossas rugas, que a cada dia tornam-se mais profundas. Inevitável.

E nos sentamos a beber café e contar histórias, como se pudessemos transcender o tempo através desta antiga e perpetuada tradição. Contar histórias.

Rir de dentes quebrados, reconhecer o patético humor de pulsos cortados, perceber a piada além-túmulo contada por inconsequentes parentes. A vida carrega suas sementes de dor e humor.

E essas marcas que vão, aos poucos, escavando nossos rostos, marcas de risadas e tristezas, pequenas e profundas linhas a registrar nossas lembranças.

Envelhecer é reconhecer a mortalidade. Envelhecer é perceber que o perene está no cotidiano de nossas vidas. Contamos nossas histórias e notamos, no delicado, frágil momento, que fazemos parte de uma linhagem. Odisseu revivido, reencenado em nosso transitar neste vale de sombras.

Se há um sentido, um propósito no Eterno, é no partilhar de vidas e recordações que encontraremos seu sutil significado. Não há eternidade sem partilha.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Domingo, 25-01-09

Domingo, 21:30. Chove. Ponto de ônibus.

Já estou esperando há trinta minutos. O corpo úmido da chuva que tomei da estação de trem até o ponto de ônibus. Espero por um ônibus que parece não existir.

Um cigarro deixa minha mão com cheiro de tabaco e cinza molhada. A chuva cai mais forte. Uma tragada profunda e a fumaça entra em meus pulmões, sai pelas narinas e o gosto fica em minha boca. Amargo e vital.

Decido não mais esperar. Olho para o céu e não há clemência. Há apenas água caindo. Deixo a frágil proteção do ponto, cansado da umidade irritante e deixo a chuva acertar minhas roupas, meu corpo.

É fria e revigorante a água que cai, caminho e a pouca luz que existe é mais o reflexo dos faróis de carros, poucos, que passam por mim. Penso que seus motoristas perdem um pouco de suas vidas ao permacerem seguros e secos por trás dos volantes.

A cada passo sinto a água penetrar em minhas roupas, gelando aos poucos minha pele, até estar completamente ensopado. A sensação é de uma infantil alegria. Uma felicidade efêmera, como toda felicidade humana. Como quando criança a brincar na correnteza torrencial que chuvas de verão formavam no meio-fio da minha rua, como as noites em claro a conversar com alguém que ainda não é nada mais que uma amiga, nada mais que seu amor eterno. Efemeridades.

Horas se foram e já em casa, meus pensamentos me obrigam a não dormir. A registrar e anotar essas impressões do dia que se foi. Preciso dormir um pouco, daqui a poucas horas um novo dia de trabalho, um dia incompleto como toda a minha vida incompleta.