sábado, 31 de janeiro de 2009

Pensamentos sobre Turner e Conrad


Turner e Conrad abarcam meu horizonte. O mar revolto, as embarcações esquivas sob o crepúsculo, nossas vidas tão pouco determinadas, tão pouco afeitas à nossa vontade.


Temos que contentar-nos com o imponderável, com o eventual que é próprio da existência. Quem há de negar que existem "sortes" e "azares" a definir o resultado de nossas ações, de nossa vontade?


Por mais que a procura por segurança, o controle das contingências e o medo do imponderável sejam o leitmotiv da era moderna, não há como fugir da realidade. Não há, por mais sólida que seja nossa embarcação, como controlar o oceano.


Atravessemos pois a nossa "linha de sombra" com a esperança que do outro lado, as rugas de sol em nosso rosto possam ser testemunhas de que ao menos tentamos.

Uma conversa nestes dias chuvosos

Estava em um ponto de ônibus , tentando acender meu cigarro debaixo da água caudalosa que tem sido de uma pontualidade exemplar nestes dias, principalmente quando comparada com o transporte coletivo da cidade. Entretido com o isqueiro, eis que me cutucam o ombro.

- Mas que coisa!? Ô seu grande filho-da-puta! Dá cá um abraço que faz tempos que não te vejo! Tirou a barba? Cansou de parecer comuna?! Continua na "lojinha"?

Quem me abraçava era o X. Já não o via a certo tempo. Dois, três anos, talvez. Um bom amigo, dos poucos que não tenho vergonha de encontrar hoje em dia.

- Pois é, cansei da barba, mas continuo no batente de domingo à domingo, sempre cansado pra missa.

- E aquela rapariga que já era quase tua esposa, fecharam o pacote?

- Então, na verdade já tem um tempo que a gente não está mais junto. Bom, pra ser sincero já pulei mais uma e agora estou aproveitando a solidão boa e particular dos solteirões de meia-idade. Ela, no final das contas, casou logo depois com o Zé, lembra dele?

- Nossa, que coisa, ora pois! é claro que lembro, não era aquele teu amigo de ir no estádio e tal? Mundo pequeno, hein? Agora o sr. então é um solteirão, fica por aí, só dando tuas beliscadinhas, tuas pequenas peregrinações pela permissiva feminilidade? vida boa, vida boa!

- Mais ou menos, na verdade tenho ficado mais fora da caçada. O tempo sozinho tem feito bem, sem maiores obrigaçõe, sem maiores compromissos. Estou adiando indefinidamente meu papel de pater familias, ou familis, como diria o sábio Mussum.

- Eita que essa foi boa! Mas sabe que a hora está chegando para o sr., não me vá dar uma de adolescente nessa altura da vida. Esse negócio de "adultoscente" é ridículo quando se tem cabelos brancos. Veja eu, casei, filho de um ano, uma alegria e completude na vida rapaz, você precisa disso uma hora e já tá passando a tua, hein?

- É, mas não sei, sinceramente não sei mais se quero transmitir, como diria o velho, "o legado de minha miséria".

- Eita nóis, citar o Machadão nessa altura da vida? Querendo parecer culto logo pra mim? Isso parece-me mais a desculpa perfeita para não assumir nada. Bom, vai vendo aí o que tu faz da vida que meu ônibus já tá chegando. Vê se não some e vai viver, pá!

Engraçado, ele não tinha esse cacoete linguístico de falar à portuguesa. Fiquei ali, levando chuva na cara, com meu isqueiro sem fluído a tentar acender um cigarro enquanto pensava o quão bocó era bancar o culto falando à portuguesa.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Do doloroso ato de escrever.

Escrever, lapidar, talhar as palavras e construir na pedra branca que são as folhas o sentido, o ritmo, o pulsar.

Sempre foi um ato mental, um construto da mente. A forma racional de representar sentimentos, alegrias, dores e perdas.

Essa era e é a meta, o objetivo, a maneira de se construir.

Mas descobri a dor do ato de escrever. De alguma forma, buscando transformar a memória em artefato, a razão cedeu. As palavras sucediam-se nas páginas. E de repente, não mais que de repente, o que era mente, racíocinio, esteticismo, foi varrido, foi violado. Um imenso desespero, uma imensa perda tomou posse do meu corpo.

Não sei, não sei se ao pintar, ao escrever, ao compor, ao lidar com seus ofícios, pintores, escritores ou músicos sentiram essa imensa vontade de chorar. Sentiram que a cada pincelada, cada palavra posta, cada nota articulada, fazia brotar lágrimas em seus olhos solitários.

Nunca escrever foi tão doído. Uma chaga aberta pelas palavras. E de alguma forma, cauterizada.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A dor que não termina

A casa era pequena e velha. As paredes estavam sujas, rabiscadas com frases, pedaços de reboco caídos. O chão da casa era de cimento, frio, cinza e rachado. Uma pequena sala, um quarto com a janela quebrada, plástico servia como vidro. Uma cômoda antiga, mofada, com roupas dadas por outros parentes e puídas, já com o cheiro que impregna a roupa dos velhos. A cama, de solteiro, pequena, triste.

No outro quarto papéis entulhados, revistas antigas sobre uma armação de cavaletes onde uma placa de propaganda política se passava por mesa. O ármario estava sem porta, as roupas jogadas, misturadas, sem saber se sujas ou limpas faziam sentido ali.

O banheiro, uma pia, uma privada, o chuveiro. Tudo reduzido, comprimido, úmido.

Uma antiga geladeira marrom e um fogão eram a cozinha. Ladrinhos vermelhos e gastos, a parte de cima desses móveis de cozinha estava preso a parede, era, como tudo, gasto e envelhecido.

As roupas eram lavadas em um tanque de pedra, na verdade, os únicos aparelhos elétricos da casa resumiam-se à velha geladeira marrom e a um rádio. Do rádio saiam músicas que faziam minha mãe chorar pelo que a vida cobrou dela. Pelo que agora, cobra de mim.

Minha mãe e meu irmão viviam nessa casa. O dinheiro e as condições de vida eram miseráveis. A casa ao lado era a casa em que morávamos há um tempo que parece tão longe. Tão triste. Esta casa, branca, com três quartos e mais uma edícula onde eu morava, foi o último lar que tive. A última vez em que "voltar para casa" fez algum sentido. Agora ela nada mais era do que ruínas, uma ruína do que fui. Como um antigo templo, ela fora saqueada, portas roubadas, coisas que pensamos ser sem valor sumiram na noite. Ratos infestavam essa casa, e viviam a rondar e aparecer na pequena e velha casa onde agora minha mãe e meu irmão viviam.

Desde que saí da cidade de minha mãe, nunca mais a visitei. Nunca procurei saber quais suas condições de vida ou penúrias ou medos ou angústias ou arrependimentos.

Andando nos arredores de meu apartamento, nesta cidade que adotei, passei por uma velha. Uma pessoa que reconheci poucos passos antes. A rugas eram profundas, o olhar, perdido, vazio, não tenho outra palavra para usar. Era tristeza o que via ali. Eu a reconheci e passei por ela. Esmagado, covarde. Passei dois passos, virei-me e com a voz trêmula falei: "Mãe?!"

Isso foi alguns anos antes da casa velha e pequena. A casa onde moravam minha mãe e meu irmão e que nunca fora visitar.

Minha mãe foi internada no hospital com hemorragia interna. Recebi o telefonema e tudo ficou nulo, de alguma forma, tudo ficou branco, vazio.

Ela estava em uma UTI, um tubo enfiado em sua boca havia deformava seu rosto enrugado. Deitada eu uma cama de metal as mãos inchadas e roxas por causa das agulhas de soro e remédios estava uma criança indefesa. Temi cada passo até o leito. Tremia ao ver minha mãe ali. Ela abriu os olhos e minha garganta fechou, meus olhos derramavam lágrimas quentes, ardidas. Eu convulsionava e só conseguia pedir perdão, perdão por ter sido um filho ausente e frio, por ter sido menos que um filho. E ali, naquele momento, aquela pessoa que tanto me fizera sofrer, que me espancava em seus momentos de fúria e alucinação, que tão pouco me confortou, ergueu sua mão inchada, olhou meu tormento com seus olhos de criança e com a voz por entre os lábios secos apenas disse "Não, meu filho, meu filhinho, não chore, mamãe está bem, não chore, não chore..."

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Madrugada II - 27-01-09

Somos obcecados pela idéia da felicidade. Somos arrastados por esta moderna obsessão.

O que é felicidade? O que é a sua felicidade? Será essa nossa condição, nosso último destino. Eternal bliss?

Onde encontrá-la? No gozo frenético dos amantes? No embuste de nossos egos sensíveis? Nas tênues escolhas que fazemos ao longo da vida?

O que é a felicidade?

Levados a crer que ela é um direito, uma obrigação, buscamos a resposta, buscamos sua definição. O que é a felicidade?

Será que esquecemos a pequena quantidade de felicidade a que somos destinados? Será que não percebemos mais as eventualidades, as contingências inerentes de nosso ser?

Deixamos de lado a imperfeição humana, varremos para debaixo do tapete nossas falhas e simulacros. Ratos em uma gaiola, correndo, fugindo, rodando. Tememos o erro, tememos o fim. Somos uma geração covarde.

O que é a felicidade? Um trauma.

Madrugada I - 27-01-09

Fragilidade.

Percebemos a morte em nossas rugas, que a cada dia tornam-se mais profundas. Inevitável.

E nos sentamos a beber café e contar histórias, como se pudessemos transcender o tempo através desta antiga e perpetuada tradição. Contar histórias.

Rir de dentes quebrados, reconhecer o patético humor de pulsos cortados, perceber a piada além-túmulo contada por inconsequentes parentes. A vida carrega suas sementes de dor e humor.

E essas marcas que vão, aos poucos, escavando nossos rostos, marcas de risadas e tristezas, pequenas e profundas linhas a registrar nossas lembranças.

Envelhecer é reconhecer a mortalidade. Envelhecer é perceber que o perene está no cotidiano de nossas vidas. Contamos nossas histórias e notamos, no delicado, frágil momento, que fazemos parte de uma linhagem. Odisseu revivido, reencenado em nosso transitar neste vale de sombras.

Se há um sentido, um propósito no Eterno, é no partilhar de vidas e recordações que encontraremos seu sutil significado. Não há eternidade sem partilha.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Domingo, 25-01-09

Domingo, 21:30. Chove. Ponto de ônibus.

Já estou esperando há trinta minutos. O corpo úmido da chuva que tomei da estação de trem até o ponto de ônibus. Espero por um ônibus que parece não existir.

Um cigarro deixa minha mão com cheiro de tabaco e cinza molhada. A chuva cai mais forte. Uma tragada profunda e a fumaça entra em meus pulmões, sai pelas narinas e o gosto fica em minha boca. Amargo e vital.

Decido não mais esperar. Olho para o céu e não há clemência. Há apenas água caindo. Deixo a frágil proteção do ponto, cansado da umidade irritante e deixo a chuva acertar minhas roupas, meu corpo.

É fria e revigorante a água que cai, caminho e a pouca luz que existe é mais o reflexo dos faróis de carros, poucos, que passam por mim. Penso que seus motoristas perdem um pouco de suas vidas ao permacerem seguros e secos por trás dos volantes.

A cada passo sinto a água penetrar em minhas roupas, gelando aos poucos minha pele, até estar completamente ensopado. A sensação é de uma infantil alegria. Uma felicidade efêmera, como toda felicidade humana. Como quando criança a brincar na correnteza torrencial que chuvas de verão formavam no meio-fio da minha rua, como as noites em claro a conversar com alguém que ainda não é nada mais que uma amiga, nada mais que seu amor eterno. Efemeridades.

Horas se foram e já em casa, meus pensamentos me obrigam a não dormir. A registrar e anotar essas impressões do dia que se foi. Preciso dormir um pouco, daqui a poucas horas um novo dia de trabalho, um dia incompleto como toda a minha vida incompleta.