quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Prece

Chove nesta madrugada. Uma chuva lenta, tranquila, que deixa o ar limpo e fresco. Silêncio nas ruas, ao longe, um pássaro plange seu canto solitário.

Em madrugadas como essa é fácil acreditar em Deus.

A chama do isqueiro ilumina suavemente o quarto, trago a fumaça do cigarro como quem murmura uma prece. A vida tão curta que temos e o quanto a desejamos por completo.

Pingos d'água tamborilam nos carros estacionados em frente a janela. Ritmados, calmos, uma canção de ninar cantarolada ao ritmo da chuva.

Sinto o cheiro da terra molhada, o cheiro que o abraço de Deus deve ter.

Um dia a terra irá receber meus restos, um dia serei pó, como todos estamos destinados a ser. Do pó ao pó.

Espero que chova neste dia, que seja esta mesma chuva suave.

Que me faz lembrar da boa vida que temos, pois toda vida é boa, simplesmente por ser vida. Em meio ao caos presente e intransponível, temos estes pequenos lampejos da presença d'Ele. Estar aberto aos pequenos milagres que nos cercam é o que me dá coragem diante do adverso, é o que me faz suportar, resistir aos tormentos nossos de cada dia.

Em meio ao silêncio desta madrugada, tranquilizo minha alma, acalmo meu demônio, deixo o ar da madrugada entrar para apaziguar meus tormentos.

O viver, dizem, é aprender a sofrer sem desesperar-se. Para cada momento de dor profunda, há uma alegria a ser encontrada com cada novo dia, talvez esteja sendo um tanto ingênuo, mas acredito que nossa pequena porção de felicidade está nas pequenas coisas, não nas grandiosas. Um sorriso que agradece, um olhar que encanta, uma canção que faz da nostalgia nosso coração.

Quantos pequenos momentos como esse temos em nosso dia e quão pouco prestamos atenção neles?

Também dizem que viver é aprender a morrer. Sendo assim, espero aprender da melhor forma possível, para poder dizer ao Criador que, desta vida, tudo que vivi foi o mais belo presente que Ele poderia ter me oferecido.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Um fim

Cuspiu catarro e sangue naquele dia morno. O sol brilhava, uma leve brisa outonal entrava pela janela do banheiro.

Suas mãos apertavam a borda da pia, levantou o rosto, estava pálido. O peito ardia ferozmente, tentou aspirar o ar fresco da manhã mas não conseguiu. Sentou na privada e ficou olhando para suas mãos que tremiam. Levantou-se, tomou seu banho, vestiu-se e foi trabalhar.

Não procurou um médico, não precisava de diagnóstico ou de recomendações. O que havia em seus pulmões era o descaso de toda uma vida, uma vida sem razões maiores ou grandes paixões.

Não entrou em desespero, não deixou-se levar pela depressão, apenas seguia seus dias tossindo sangue e catarro.

Saber que caminhava para o fim não o incomodava, apenas não queria que sentissem pena dele, portanto, não avisou ninguém da sua família ou aos colegas do trabalho. Suas irmãs nada saberiam, seus pais nada perceberiam.

Um dia a tosse foi mais forte, mais dolorida, algo sólido subiu por sua garganta e grudou na parede da pia. Percebeu, como se percebe a picada de um mosquito, que era um pedaço de seu pulmão que cuspira. Foi então que decidiu pedir demissão do emprego.

Não escreveu nenhuma carta, não deixou nenhum recado. Sabia que iria morrer em breve e não queria estar próximo de ninguém que o pudesse confortar.

Vendeu tudo que havia em sua casa: carro, a T.V., seus livros, seus móveis. O que não conseguiu vender, deixou na rua para que fosse levado pelos catadores de lixo.

Viajou e foi morrer junto ao mar. Em suas mãos havia apenas um terço de madeira.

A Graça

Estou consumido pelos meus vícios. Sinto meu espírito partir-se, estilhaços que já não consigo juntar.

Estilhaços que cortam minha pele de dentro para fora. Falta ar em meus pulmões corrompidos pela fumaça dos cigarros que fumo sem contar.

Livrai-me do Mal que habita meu peito, uma prece sem efeito hoje, sem redenção para mim.

A dor em minhas costas encurvadas, o amargor de esperar por você, sabendo que não virá. Espero que a noite passe lentamente, o calor é insuportável, não há vento, nem as hélices do velho ventilador branco conseguem romper este ar modorrento.

Se tive sonhos em minha juventude, já não consigo lembrar-me deles. Foram-se. São menos que cinzas ao vento. Nas poucas horas que o sono me abriga, não há repouso, não há descanso, apenas o entorpecimento que abre meus olhos ao despertar é presente e intenso.

Abandono toda esperança, todo desejo. Minto, o desejar está presente, mas conspurcado, poluído por meus vícios e por minha intransigente solidão.

Mas a esperança por dias melhores se foi. Invento simulacros de uma vida ainda por viver, mas engano a quem com isso?

Não. Minha grande resposta para a vida sempre foi esse covarde negar. Este covarde e egoísta medo.

Ah! Escreverei sobre o pior que há em mim. Para purgar meu demônio, para exorcizá-lo da única forma que sei; encarando-me no espelho e desafiando o abismo.

Este abismo que tanto atrai, que com sua força a tentar-me todo dia, há de derrotar-me apenas quando minha voz silenciar, quando meu corpo abandonar sua razão, quando meus impulsos mostrarem-se fracos.

Acordar todo dia, as linhas em meu rosto aprofundam-se e assim percebo que mais um dia vivo é mais um dia em que a Graça está à minha espera.

Deus está sempre à nossa espera.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Sonhar

Foi apenas alguns dias após seu trigésimo quinto aniversário, acordou de um pesadelo.

"Quem são? Quem morreu?" - pensou, ainda com o coração a rebentar-lhe o peito. " Um acidente de carro?"

Buscou pelo copo d'água que passara a deixar ao lado da cama, hábito que tinha desde que começou seu namoro com Cristina. Fazia oito meses que estavam juntos e ela agora dormia pesadamente ao seu lado, protegida da corrente de ar gélido que passava pelo vão da janela por um cobertor xadrez, azul e preto.

Estava de costas para ele, os cabelos castanhos, longos. Ela tremeu por alguns segundos. Seu corpo ficou retesado.Ternamente ele a abraçou. Um abraço silencioso, sentiu-se como se há muito tempo não fizesse isso, sentiu a pele dela tocar a sua, um encontro que sabia ser, naquele momento, o seu ato mais amoroso. Seu toque despertou-a levemente da tensão e com um resmungo delicado virou o rosto, mergulhando em seu peito protetor.

Abraçados, voltaram a dormir. Protegidos do frio pelo calor de seus corpos, afastaram-se dos sonhos inconscientes e mesquinhos. Estavam juntos pela primeira vez.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Prece a um amigo

Foi num dia de Janeiro. Aventuramo-nos na serra que separa nossa cidade da cidade praieira e poluída que é visitada todo verão pelos estressados cidadãos em procura de motivos diferentes para manterem-se a reclamar da vida.

Fomos até lá de trem, na época os trens eram fantasmagóricos, sujos e quebrados, mas nós éramos quatro caras que já haviam atravessado a cidade de madrugada e não era um simples e temerário trem que afastaria-nos de nosso objetivo.

Este era dos mais simples, apenas passar um dia no mato, no meio da natureza. Na verdade, pensando bem no assunto, não tinhamos nada em mente, apenas a vontade de fazer algo diferente. Portanto, municiados com uma garrafa de pinga e de um pacote de broa de milho, seguimos para o mato.

Descemos em uma parada isolada, apenas um casebre velho que servia como bar e que vendia de tudo um pouco. A cachaça e broa compramos lá, mas se quisessemos podiamos ter comprado ovos, linguiça e até alguma galinha para matar depois. Mas o que tínhamos era suficiente. Obviamente o que tínhamos não era nada ideal para os padrões modernosde aventureiros, estávamos vestidos com nossas roupas comuns: calças e casacos jeans, camiseta e tênis. E nossa provisão inusitada.

Seguimos por um terreno plano, marcado por altas torres de tensão que com sua arquitetura iam ao infinito, levando energia e civilização para as pessoas. Nós, naquele dia, fugíamos disso.

Logo entramos em uma parte mais fechada da mata e depois de andar por mais ou menos uma hora encontramos um rio. Zeno, um skinhead que já tinha uma vez ameaçado me espancar em uma noite de bebedeira, conhecia a região. Afinal, passara um mês por ali, escondido da polícia por razões que desconheço até hoje. Portanto, sendo conhecedor profundo daquele lugar, orientou nossa expedição mambembe.

"Seguindo o rio, iremos encontrar as cachoeiras." Disse após dar um gole na cachaça e me passar a garrafa.

O dia estava quente e seguíamos pelo rio, ora andando dentro da água refrescante, ora caminhando à margem. Aqui e ali, sinais de acampamentos abandonados, isto é, garrafas e latas deixadas para trás, maços de cigarro vazios e até uma bóia de pneu de trator furada estava por ali.

Foi quando chegamos ao vale. Uma série de cachoeiras formavam um lago a uns quinhentos metros abaixo, o rio que seguiamos era uma dessas cachoeiras, mas pequena. Na nossa diagonal, à direita havia outra, imensa e bela, ladeada por um morro, mesmo do ponto em que estávamos, o barulho das águas caindo era cristalino, forte.

Descemos até o lago e ficamos por ali, a bebericar nossa aguardente e olhar para o céu azul e a água clara que corria.

Foi então que Tabba, um outro colega, encarou o morro com seu olhar desafiador, olhou para nós com os olhos flamejantes e disparou o desafio.

"Vamos subir essa porra!"

Em um primeiro instante nos entreolhamos, mas a juventude e o álcool fizeram sua parte. Todos queriam desafiar o morro imponente.

Começamos a subida. Na frente Zeno, logo abaixo dele, Tabba, eu era o terceiro e Chupisco estava logo atrás de mim. Nos primeiros momentos da subida percebi, graças aos pedregulhos e a areia que caia em minha cabeça, que a terra do morro era muito arenosa e que todo ponto de apoio utilizado pelos dois acima de mim, era logo desintegrado por suas mãos ou pés. Chupisco, que era o último, percebeu que para ele a dificuldade seria maior, e gritou abaixo de mim.

"Cês tão doido, eu vou ficar aqui embaixo, vou subir isso aí, não!"

Eu nem olhei para trás, estava preocupado com a quantidade de terra que caia e percebia que a cada metro que subíamos o caminho ficava mais difícil. Não havia como utilizar os mesmos apoios, pois uma vez usados, eles já não existiam. Portanto, continuar seguindo os dois só iria me deixar em apuros.

A cada metro subido, os apoios diminuiam, cheguei em um ponto em que não tinha mais como apoiar a subida.

Foi quando decidi mudar o meu trajeto. Subíamos pela esquerda do morro, que era a parte mais arenosa, a minha direita, o terreno tinha mais mato e algumas raízes que comecei a usar para manter-me preso ao morro, já havíamos subido um bom pedaço e agora não tinha volta, era subir ou subir, descer era simplesmente impossível.

Fui pelo meu novo trajeto e já não mais via os dois que iniciaram a subida. Agora, não havia ninguém. Apenas eu, as raízes e a terra do morro entrando em meus olhos e boca.

Ali, sozinho, percebi que minha vida podia terminar, esborrachada nas pedras vermelhas abaixo.

Ali, sozinho, percebi que a única coisa que me manteria vivo era a capacidade de entender o que meu corpo agarrava, pois agora não apenas minhas mãos e pés mantinham-me preso ao morro, mas sentia meu peito, minhas coxas, minha barriga, todo meu corpo estava preso aquele morro, como um amante à sua amada, como um filho agarrado à mãe. Aquele morro era o que exisitia para mim naquele momento. Sem ele, eu era apenas um corpo caindo para o vazio.

Subi mais alguns metros e atingi a parte do morro em que já podia ficar realtivamente de pé, o terreno já não era de pedra e areia, era um matagal de três metros de altura. Havia o que agarrar agora, sem medo de cair, mas a densidade do mato era tamanha que a única forma de atravessar era me jogando em cima do mato para conseguir seguir em frente. Isso durou horas. O mato era cortante, e minhas mãos estavam com pequenos ferimentos causados pelo fio das folhas. Eu suava e sufocava. Sentia que o álcool já abandonara meu corpo e a força que fazia e a adrenalina me faziam gargalhar.

De repente, estava no topo. Fora o primeiro a chegar. Sozinho o sol me recebeu. Sozinho o ar puro encheu meus pulmões. Abri os braços e gritei. Gritei como nunca gritara antes e nunca mais gritei daquela forma.

Êxtase!

Gritei por estar vivo. Por sentir-me vivo! Por ter sido poupado por aqueles deuses primevos que habitam a natureza selvagem.

Logo depois meus dois companheiros de subida chegaram, nos abraçamos e comemoramos nosso dia, nossa conquista, nosso destemor infantil.

Descemos o morro pela cachoeira grande e a chuva chegou junto. Terminamos o dia voltando para casa, cheios de lama, molhados, bêbados e felizes.

Muito tempo passou depois deste dia. Zeno foi preso e nunca mais o vi. Tabba se matou. Um dia pulou de uma ponte aqui perto de casa e seu corpo foi encontrado dois dias depois. Chupisco desapareceu na vida.

Eu sobrevivi.

E devo isso ao Tabba, que na subida de volta, pela cachoeira pequena, eu, meio bêbado, dei um passo em falso, meu pé esquerdo flutou no abismo e só senti a mão dele puxando-me pelo casaco jeans, arrastando-me da queda. Esse cara salvou minha vida.

Portanto, devo essa história a ele. Que sua alma encontre a paz que não teve na vida.

Argamassa e Tijolos

Há um muro a nos separar.

Será que não percebe que construímos esse muro? Mas por qual razão nos mantemos tão afastados, tão distantes?

Será que, como esses muros altos que protegem grandes mansões, não estamos apenas nos isolando da vida? Mas, diferente destes, que tem algo a temer, afinal a violência grassa em nossa cidade como deve saber. Mas e nós, o que tememos?

Tememos a nós mesmos? Tememos o desencontrar de nosso tempo e vida? O que protegemos deixando este muro a nos separar? Vidas incompletas, talvez.

Acordo todos os dias e treino um sorriso cínico no espelho pensando: "Não há de me incomodar este muro, não há de me fazer querer derruba-lo." Me convenço e saio para mais um dia de trabalho e simulações.

O tempo é a argamassa que vai fortalecendo este muro. Deixo que ele trabalhe e tento não mais pensar no que ele significa ou no que ele separa. Deixo que minha rotina seja preenchida de vazio e desesperança, apenas para encontrar um rosto envelhecido ao amanhecer.

Estou velho demais para isso.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Sem querer

Ele estava com medo dela. Não era um temor natural, como tememos um cachorro bravo ou baratas voadoras, mas um medo ali dentro que o fazia sentir o coração bombear forte e sua face corar como um adolescente.

Soube que sentia isso ao cruzar o olhar e as palavras com ela, não da primeira vez, como em comédias românticas e irreais, mas após penetrar, quase sem querer, em um universo de dúvidas e lembranças, paixões e músicas, que derrubaram seu muro emocional.

Não era algo que esperava, nunca é, e apesar da experiência em outros relacionamentos, todo alquebrados, sentia esse temor de forma consistente, plena.

Disfarçava, em cada novo encontro fortuíto, seu medo com um misto de arrogância e cinísmo, uma forma desesperada de reerguer, de novamente encontrar sua proteção solitária. Às vezes não conseguia e sentia-se vulnerável, o que o deixava irritado consigo mesmo por não ser capaz de manter-se no controle, de deixar-se levar por aquele sorriso sincero e tímido que o comovia sem querer.

Passou os últimos dias a medir, a refletir, a equilibrar-se em motivos que o obrigava a racionalizar e afastar-se de alguma forma daquele medo. Dela.

Procurou silenciar sua vida de forma a não deixar mais que dali, nada se revelasse que pudesse comprometer o que mais importante encontrara nela. Sua amizade.

Pois sabia que, no final de tantos e desastrosos finais que dividiu em sua vida, o bem mais precioso perdido era aquele intangível e irrecuperável encontro que tão pouco acontece em nossas vidas.

E por conta disso, seguiu sua vida, sem mais permitir que seu empedernido coração voltasse a bater de forma descontrolada.

O Lutador

Qanto tempo até percebermos que já não há mais tempo? Quanto tempo a vida nos dá para tentarmos acertar o que passamos uma vida errando?

As marcas em seu corpo mostram o tempo que o consumiu e as lágrimas em seu rosto deformado pela dor revelam que algo em sua alma ainda clama por redenção.

Não conhecer outra forma de provar que está vivo do que suportar a dor, que é tão viciante quanto os remédios que toma para suportar o que foi desperdiçado.

Ah, velhos hábitos, quando nossas paixões viram nossa decadência? a partir de que ponto nossas escolhas viram nosso destino e não permitem mais outra saída senão o aceitar sereno e combalido de nossa fragilidade, mesmo que disfarçada de ousadia e tenacidade?

Existe um ponto onde não é mais possível voltar. Onde não é mais possível corrigir os erros. Sim, mas a única coisa que esperamos é que, estejamos de pé ou ajoelhados no final, seja por sabermos que chegamos até ali por nossa decisão, e que não há ninguém a culpar além de nós mesmos.

E que isso seja suficiente.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Fragilidade

A última conversa com seu pai foi pelo telefone.

O tempo passara por dez anos e desde então não via seu pai. Apenas contatos esparsos.

Agora conversavam pela última vez, mas não sabiam disso.

O rancor da adolescência, que perdurou por boa parte de sua entrada na vida adulta, havia dissipado-se no coração do filho. Apenas queria dizer ao pai que aquela era sua vida, que aquelas eram suas escolhas e que era agradecido por tudo que, por mais dolorido que tenha sido, aprendera e vivera nos poucos anos juntos.

Como se soubesse que aquela era a última vez, seu pai demonstrou pela primeira vez compreensão, carinho e respeito pelas decisões do filho. Mesmo sabendo em seu peito que aquelas escolhas ainda cobrariam um preço alto na vida do seu garoto.

Despediram-se com cuidado, prometendo uma viagem, um encontro, uma cerveja e um cigarro juntos. Quem sabe, até ouvir alguns velhos discos. Desejavam e falavam um para o outro do encontro que nunca aconteceria, à beira-mar, ouvindo o som das ondas quebrando.

Poucos dias depois dessa conversa, enquanto assumia seu novo posto no emprego, um telefonema acabou com o encontro no porvir. Uma voz, que a princípio julgou ser de seu pai, disse-lhe que este morrera. Achou que fosse uma piada em um primeiro momento (nunca acreditamos nisso, é de nossa natureza, acho) mas no segundo seguinte a garganta fechou e as lágrimas brotaram de seus olhos, soluçou sua dor e largou o telefone nas mãos de um colega. Sentiu as pernas e o peito fraquejarem e foi abraçado por um amigo. Nada mais a dizer ao seu pai. Apenas lágrimas.

No enterro, afastou-se da família que não via há muito tempo e sentou debaixo de um toldo, chorando copiosamente. Lembrou então das palavras de sua mãe que dizia que seu pai, quando nasceu o filho, chorou como uma criança.

Agora era ele quem chorava. Não pela vida, como seu pai, mas pelo tempo que perdeu sendo menos que um filho.

Há dores que o tempo não cura, há cicatrizes que coçam toda vez que a solidão abraça nosso frágil corpo.

Sacrifício

Quando a vida termina? Quando ela começa?

Quem decide a qualidade da vida que levamos ou determina qual o padrão correto que é aceito como uma vida saudável?

Na Itália, alguém se foi por uma decisão médica. Que egoísmo é esse dentro de nós que não tem caridade pelos que não tem voz?

Esqueçam a política, os direitos impressos nas constituições e pensem.

Pensem naquele mendigo, que com seu cheiro agredia todos os passageiros do ônibus, ainda assim, um homem por trás da sujeira, da aparência, da repugnância. Quem de nós tem a coragem de ser tão cruel, de negar a uma pessoa seu direito de ser?.

Mesmo alquebrado, mesmo bêbado e maltrapilho, não há um homem ali? Não há respeito em nós pela sua simples existência?

Temo quando para essas respostas, sei que vários irão dizer, proclamar, desenvolver idéias que negam o simples, o ordinário, que tentam determinar (determinam) o valor da vida através de seus cáculos, de suas boas intenções, de seu cuidado para com uma vida saudável.

Quando nos deixamos levar por essas idéias, por esses conceitos, começamos a perder o sentido da própria vida.

Não, não haverá nunca um Paraíso terrestre e, ao tentarmos determiná-lo, moldá-lo, nada mais somos além de pequenos e egoístas semi-deuses exigindo um sacrifício que não é nosso, mas de nossos irmãos mais carentes, mais indefesos.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sorrir

Segurei pela primeira vez aquele bebê em um domingo de sol. Sempre tive medo do olhar dos bebês e, naquela vez, não era diferente. É como se o olhar deles penetrasse minha alma e soubesse de meus pecados de homem. Como se deles eu não conseguisse manter minhas máscaras e meus maiores pecados e falhas fossem cristalinos para eles.

O bebê cheirava como bebês devem cheirar. Um misto de perfume natural com leite azedo. As pequeninas e macias mãos brincavam com minha barba, seu rostinho rosado era delicado, sua boca emitia pequenos sons ininteligíveis e carinhosos. Meu olhar cruzou com o da criança que fomos todos um dia. Pela primeira vez em minha vida o medo dissipou-se. Naquele olhar não havia meu temido julgamento, ao contrário, parecia bendizer e perdoar todas as chagas de minha alma.

Aquilo durou apenas um momento, até que ela, com sua natural necessidade, gorfasse no Clint Eastwood estampado em minha camiseta, fazendo com que eu sorrisse para a vida como nunca sorrira até então.

Fantasma de uma vida

Ela saiu deixando o perfume nostálgico de seu sorriso na sala.

"Não sei, não quero ser dessas pessoas que quando terminam um relacionamente jogam tudo fora, todas as lembranças, apagam todas as músicas e queimam as fotos. Você foi um momento bom na minha vida, preciso disso para continuar acreditando"

Disse isso e se foi.

Depois de fechar a porta e perceber que o apartamento estava vazio de tudo, pensei no que havia jogado fora, melhor, pensei na razão de ter jogado uma vida com ela fora.

Por não querer encarar os problemas de nossa vida futura? Por já achar que esta vida estava comprometida pelos desencantos do último ano? Pelo simples fato de não saber como manter uma vida compartilhada?

Tudo que irá restar dessa história serão as boas lembranças. Será que por elas terminei uma família que poderia ser a minha?

E agora? e na próxima vez (estou tão ansioso assim por uma próxima vez?) será que valerá a pena trocar a incompletude que acompanha a amizade por momentos de entrega total que secarão completamente os encantos que florescem no alvorecer da paixão?

Permaneço como um fantasma nesta casa a esperar por lembranças que mantenho longe de mim. E como um fantasma, etéreo, incorpóreo, sem ação sobre o mundo real, entrego-me ao mais profundo descuido.

O aguilhão

Mentiu naquele dia pela primeira vez em um relacionamento de doze anos. Na verdade, já vinha dissimulando seus atos há pelo menos um mês.

Começou tudo em um jantar da empresa, sempre foi controlado e adorava manter a pureza de seu casamento em meio aos colegas que ou eram solteirões descompromissados ou casados que habituaram-se a trair suas parceiras sem culpa. No jantar em questão, bebeu mais do que o normal e já que a loira do outro lado da mesa insistia em lançar olhares para ele, resolveu sentar-se ao lado dela.

Suas pernas o impressionaram, seja pela falta de hábito de olhar para pernas alheias as da sua mulher, seja pelo curto vestido que as deixava impressionantes aos olhos masculinos. Nem soube direito o que disse, apenas prestava atenção aos lábios que exalavam um cheiro de vinho tinto que contribui mais ainda para o seu estado de embriaguez.

Passou o último mês embriagado e mergulhado em pequenos esquemas que o levavam a perder os jantares e a tediosa conversa matrimonial.

A mentira que tomou corpo naquele dia foi, como toda mentira em um casamento, um ato falho, uma desculpa que não deu certo, um atraso não explicado. Balbuciou que havia ido a um jogo de pôquer na casa de amigos, mas a verdade estava estampada em seu olhar culpado.

O mundo que construiu desmoronou quando sua esposa, com um olhar de tristeza que ele nunca havia visto antes, nem na morte da avó dela, simplesmente mostrou as últimas ligações do celular dele. Havia, tolamente, esquecido o celular em casa e como é óbvio, todas as mensagens eram das pernas embriagantes.

Sua esposa não fez nenhuma cena de suicídio, nem ameaçou arremessar seus discos pela janela. Apenas ficou encarando-o longamente, esperando que seu ódio alimentasse, penetrasse o coração do marido até a culpa queimar nele. Ela queima até hoje.

Não sabemos até agora o fim deste relacionamente, afinal, nenhum relacionamento realmente termina, ele fica assombrando, preenchendo, surgindo nos momentos mais estranhos durante toda a vida. Seja através de velhos amigos que sempre perguntam o que aconteceu, seja com o encontro deprimente com algum parente. Se há algo que sabemos é que a culpa mantém seu aguilhão no peito dele desde então.

Um cinzeiro

"Um cinzeiro cheio é um estudo de pessimismo" - pensou enquanto erguia-se para esvaziar o objeto de sua contemplação.

Passara o dia a fumar, sem saborear o gosto do tabaco, apenas para sentir que fazia alguma coisa para preencher as horas. Às vezes, ia até a janela observar o movimento das pessoas que entretinham-se com seus cachorros. O sol estava fabulosamente quente, o que era uma desculpa para não sair de casa. "Não, está quente demais para ir a algum lugar"

O dia acabou. O telefone, fora do gancho desde a noite anterior, não era necessário, afinal, mantinha à sua volta um fosso de indiferença para com as pessoas que era veementemente respeitado. Por ele mesmo, principalmente.

Esvaziou o cinzeiro com indiferença e voltou para o escritório já acendendo outro cigarro. Sentou na poltrona velha e marrom, arranhada por um gato que há muito tempo não fazia mais parte de sua vida. Em cima da escrivaninha depositou o objeto de vidro que servia para depositar seu pessimismo, vários livros empilhados faziam da operação um exercício de logística e equilibrio. Livros novos, marcados, meio lidos ou sequer abertos que eram motivo de um tênue e raso orgulho.

Ouviu ao longe o choro de uma criança, aquilo o incomodou. Olhou para fora da janela e tentou identificar de onde vinha, mas não saberia dizer de qual das casas na rua saia o som que o fazia lembrar de seus sonhos abandonados.

As horas, inexoráveis, seguiam seu curso. A madrugada avançava. "Dormir agora, amanhã mais um dia", balbuciou essas palavras enquanto abria o vidro onde guardava suas pílulas para dormir, pegou um copo com água e engoliu duas. Sentou-se na beira da cama esperando que a quimíca fizesse efeito em seu corpo. Esperou. Acendeu seu último cigarro, o que fez com que sentisse um frio na espinha. "Droga, devia ter comprado um maço antes de vir para casa" . Foi então que percebeu que o pessimismo alojara-se em seu peito e não conseguiu dormir.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O que vi em olhos castanhos que tanto me alegraram.

O que vi em olhos castanhos que tanto me alegraram foi o enigma revelado. Foi a pequena e luminosa chama que arde quando toda a luz se foi.

Como é pequena, delicada, a chama desse olhar.

O som deste sorriso de cores ergueu-me dos mortos, um fio de Ariadne a guiar meus passos para fora do labirinto que construi para esconder-me da vida.

E hoje, já não mais escondido, já não mais protegido, dou cada passo esperando encontrar o que vi nesses olhos castanhos um dia.

Um peregrino nessa terra desolada.

Lapso

Chove novamente. Novamente é madrugada. Sozinho novamente como há quize anos atrás. Novamente um cigarro queima e preenche minha existência.

Não há vicío pior para o homem do que a permanente fuga da realidade. Se soubesse o que sei hoje há vinte anos atrás, teria mudado algo? Rio diante da resposta que sei ser mentirosa.

Permanecemos ao longo da vida? Ou apenas vamos percebendo nossas falhas, nossos vazios e procuramos justificá-los, criando uma imagem que vamos modelando e, assim, seguir a ludibriar a nós mesmos ?

A única coisa concreta que construi na vida, minha única conquista, é um pulmão cheio de catarro dos cigarros que preenchem minha existência. Ou será a culpa que se alojou em meus pulmões?

O resto foi apenas um lapso do Eterno.

Escolhas

Quais são as escolhas que realmente fazemos na vida? Quem de nós pode dizer: "Eu sou o que sou pela minha vontade?"

Escolhi um caminho? Ou a vida que me deu opções que ignorei por arrogância, medo, excesso de juventude e irresponsabilidade?

Não, não falarei aqui de nada bom sobre minhas escolhas, até porque sei que não, elas não existem. O que existiu, (ainda existe?) foram acasos fortuitos, grandes decepções e traições. A experiência que os anos deveriam trazer, nada mais é do que uma cortina de fumaça, uma ilusão que que uso para justificar minha pequenez, minha covardia.

E estes sentimentos que nascem da autocomiseração são os mais patéticos que um homem pode carregar dentro de si.

Um dia achei ser capaz de comandar tempestades e o oceano, um dia as montanhas nada mais eram do que conquistas a serem realizadas, um dia amei uma mulher por quem valia a pena ser, um dia tive a coragem de ter amigos.

Perguntam-me: "Há escolhas certas ou erradas?" , "Há um sentido por trás disso tudo?" E para isso me calo. Visto meu paletó cinza e saio, pisando no asfalto quente com sapatos apertados. Por dentro há apenas silêncio, há apenas vazio.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Sob o domínio do mar

- Até lá, riamos!


Gritou da popa o velho marinheiro. Ele tinha a pele carcomida pelo sol e pelo sal de toda uma vida no mar. Nos últimos quinze dias a calmaria havia fustigado aquele barco. Agora a tempestade esmagava com o peso das águas a pequena fragata que carregava sua apática carga de homens.


A gargalhada desdentada ecoava acima do rugido das ondas. O velho despreza qualquer terror, qualquer medo. Mas com sua risada violenta, seus companheiros de infortúnio tremiam, recitavam suas orações, olhavam para o céu negro e alguns até misturavam lágrimas de medo com a água da chuva sem saber.


O timoneiro mantinha o leme no curso. Seu esforço era evidente pelas veias saltadas do braço, grandes e azuis, o sangue parecia querer rebentar delas.


- Nada a fazer, nada a fazer. Gemia o capitão, um homem até então arrogante e cruel com seus comandados, agora percebia-se que algo quebrara dentro dele, algo que, escondido por suas promoções, sua origem abastada e sua confiança infantil, havia permanecido escondido por toda sua vida. Era a sua mortalidade que agarrava com garras ossudas seu coração.


O barco parecia rodopiar no oceano Índico. Ali, em meio ao mais puro caos, não importavam mais as medições humanas, as técnicas aprendidas na academia, mesmo experiêcias anteriores não tinham mais significado. Aquele pequeno mundo que era o barco, enfrentava agora o seu dilúvio.

Quantas horas foram jogados de um lado para o outro naquele terror não saberiam dizer. O que de certo podemos saber é dos farrapos humanos que foram encontrados por um cargueiro chinês em um barco arrebentado e à deriva. Nos corpos esfaimados dos marinheiros, as marcas e cicatrizes da luta que enfrentaram. Estavam alquebrados e quase desfalecidos, apenas um dentre eles permanecia com o olhar forte.

Prescrutando a imensidão azul, o rosto crivado pela dor, pela fragilidade, o capitão da fragata apertava os punhos. Ao sobreviver ao horror dos últimos dias sabia que algo havia naufragado dentro de si. Já não tinha dentro de si a juventude de sua arrogância, esta havia morrido, agora restara apenas a têmpera de sua maturidade.